quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O SACRIFICIO DE ABEL



O SACRIFÍCIO DE ABEL

Gênesis 4; Hebreus 11:4


William Kelly





Se tomarmos a história do jardim de Éden em seu conjunto, veremos nela um todo no mais pleno sentido, e um breve, porém completo, quadro dos caminhos de Deus. O homem posto sob responsabilidade, até mesmo sob a lei, foi um transgressor, e mostrou-se ser um verdadeiro pecador, sendo lançado fora do lugar de sua residência, onde Deus o visitava para ter comunhão com ele. Mas Deus não o lançou fora com o propósito de começar um novo mundo longe dele, e sem dar um testemunho pleno da soberana graça que faz frente ao mal que lhe sobreveio. A nudez do homem era a expressão da inocência perdida; a vergonha, a culpa e o temor culpável na presença de Deus, constituíam agora o estado do homem. Deus em sua soberana graça fez provisão para suas necessidades: primeiro vestiu Adão com aquilo que provém da morte, e em seguida, mantém diante de Seus olhos a Sua própria obra. Isto não tinha como objetivo proclamar que o homem estivesse nu em si mesmo, mas, anunciar que Deus mesmo, havendo tomado conhecimento desta situação, em graça, cobriu a sua nudez. O estado presente foi perfeito e plenamente previsto, e o poder do mal julgado no futuro. Daqui em diante o poder da semente da serpente seria destruído.

Contudo, o homem foi desta forma lançado da presença de Deus; com a inocência perdida começou um novo mundo, e então, surgi necessariamente a pergunta: “Pode ter o homem algo que dizer a Deus? E como?” Pois bem, é claro que se Deus agiu no homem, ele não podia nem por um momento ser indiferente ao que havia sucedido; e mais claro é ainda, o fato de que Deus não podia ser indiferente ao estado mal no qual o homem se encontrava agora, e que foi expresso pelo que ele era em pecado e longe de Deus. Foi através daquilo que revelou a triste condição do homem, que Deus viu como o mal estava nele.

A expulsão do paraíso pôs o homem em uma via judicial fora daquele lugar, ainda que não de maneira irrecuperável. Lançado para fora do jardim podemos perguntar: “Podia o homem aproximar-se de Deus?” Na realidade, agora não podia, enquanto fosse insensível ao estado no qual havia entrado; neste estado permaneceria afastado de Deus para sempre, e Deus, em Seu governo e testemunho públicos, não podia dar testemunho de receber o homem nesta condição. E esta é a nova plataforma sobre a qual se encontram Caim e Abel: a da aproximação de Deus achando-se num estado que foi o resultado da expulsão de Sua presença. Aproximamos de Deus como se nada tivesse acontecido, em relação com as circunstâncias e os deveres diários do lugar no qual temos entrado, ou em contrário, conscientes da triste realidade deste estado, conscientes da nossa queda, e elevando nossos olhares a Deus plenamente conscientes de que as temos adquirido pelo pecado? Todo cristão sabe. E note-se bem aqui, que não se trata de pecado cometido, mas da consciência de nossa verdadeira condição diante de Deus.

Caim vai a Deus com o fruto de seu penoso labor (o homem havia sido enviado para cultivar a terra). Tal é o verdadeiro estado prático do homem lançado fora. Em Abel, pelo contrário, a fé tem suas percepções. O pecado havia entrado e, pelo pecado, a morte; e a fé o reconhece. “Agora, na consumação dos séculos, se apresentou uma vez para sempre, pelo sacrifício de si mesmo para tirar do meio o pecado” (Hebreus 9:26). Isto não era a purificação dos pecados atuais cometidos pelo indivíduo. Destes se fala imediatamente depois, como um tema aparte e distinto, que agrega o juízo, porém um juízo já pronunciado para aqueles que olham para Ele como Aquele que levou nossos pecados, Aquele que veio a ser Ele mesmo o Juiz (Hebreus 9:26-28).

Temos quatro mundos, por assim dizer, neste aspecto:

1.  O jardim do Éden

2.  Um mundo não mais inocente, e um homem separado de Deus e lançado fora, num lugar onde o pecado e Satanás reinam.

3.  Um mundo no qual Cristo reina em justiça, e

4.  Os novos céus e a nova terra, onde mora a justiça.

Temos um mundo inocente (que agora já passou) onde o homem foi provado sem o mal nele pela simples obediência. O mundo final, baseado na justiça, que nunca muda na sua natureza, e que não pode mudar na sua estabilidade moral

Porém tão cedo como o pecado havia entrado e caracterizado o mundo e o estado do homem, os termos sobre os quais o homem podia estar com Deus deviam ser mudados, porquanto Deus não podia mudar. O fato de que um Deus santo e uma criação pecaminosa tivessem que estar nos mesmos termos, como se esta fosse inocente, simplesmente não podia ser. A livre e feliz comunhão seria impossível. Podia haver um clamor por graça de parte do homem (um reto pelo terreno sobre o qual o homem se achava), porém não uma livre relação. Que Deus seja amor, não altera este fato. Seu amor é um amor santo, pois Ele é luz; porém “os homens amaram mais as trevas que a luz, porque suas obras eram más” (João 3:19).

Admito e creio que o livre e soberano amor de Deus originado por si mesmo, constitui a fonte de todo nosso gozo, esperanças e bênçãos, eternas e infinitas como o são. Porém Deus exerce esse amor mediante a introdução de um Mediador na morte: não aqui mediante o derramamento de sangue para pagar a culpa, mas na perfeita entrega de Si mesmo a Deus no que era a morte, como tal, e o fruto do pecado. Ofereceu-se a gordura (Gênesis 4:4) assim como a sangue, porém não oferecida como tal para perdão, senão para aceitação em Outro, o qual se deu a si mesmo completamente a Deus na morte, a qual havia entrado. E advirta-se que as almas podiam acercar-se a Deus: cada qual vinha com sua oferenda.

Caim veio como se nada tivesse passado, e foi tanto assim, que trouxe a Deus como oferta o que era sinal do estado arruinado no qual havia entrado, mas que ele não reconhecia como de ruína. Não havia fé nisto. Em Abel sim havia. Ele ofereceu pela fé ― o qual reconhecia que a morte havia entrado pelo pecado―, mas que Outro havia dado a Si mesmo por ele, uma oferta feita pelo fogo do odor da gratidão. Porque há duas coisas: “Ao que nos amou, e nos lavou de nossos pecados” (Apocalipse 1:5) e “Cristo nos amou, e se entregou a si mesmo por nós, oferta e sacrifício a Deus em aroma suave” (Efésios 5:2). A primeira havia de purificar os pecados precedentes; a outra assinalava o valor e a preciosidade dAquele em quem somos aceitos, “aceitos no Amado” (Efésios 1:6). Agora sim, tratava-se de uma questão de aceitação ao apresentar-se diante de Deus; e Deus não aceito a oferta de Caim. Ele aceitou a oferta de Abel, pois o testemunho foi dado de seus dons. Abel foi aceito, porém o testemunho de Deus era a respeito do que ele trouxe: a vida de outro em todas suas energias e perfeição entregue a Deus na morte.

Outra coisa devemos observar aqui: não se tratava de Deus apresentando algo ao pecador. Isso era uma “propiciação (ιλαστήριον) por meio da fé em seu sangue” (Romanos 3:25). Aqui trata-se de Abel apresentando-se a si mesmo a Deus, mas vindo mediante a aceitação e perfeição de Outro que havia dado a si mesmo por ele. E isto é propiciação. Pois bem, dizer que Deus pode receber um pecador tal como se recebe uma pessoa inocente, equivale a dizer que Deus é indiferente ao bem e ao mal. E, observemos isto, não foi feita uma diferença conforme uma mudança interior que os olhos de Deus tenha visto (ainda que havia tal mudança, pois a fé estava operando no  coração de Abel), mas uma estimação judicial de parte de Deus, dos dons que Abel trouxe, de Cristo em figura, de Cristo oferecendo-se a si mesmo em sacrifício; e dizemos isto baseados na expressa autoridade da Epístola aos Hebreus. Tratava-se de um sacrifício propiciatório como fundamento da aceitação diante de Deus; do contrario, faltaria toda a base da posição de um mundo caído, toda a base moral da preferência de Abel a Caim.

Admite-se que o amor, o amor que elege, pode ter estado ali; porém o fundamento da aceitação, tal como a Escritura o declara (veja Hebreus 11) faltaria si o sacrifício propiciatório não fosse aceito. Para ganhar a justiça segura diante de Deus, e para aceitação do crente, conforme o valor que é em Cristo, Ele se ofereceu a si mesmo absolutamente sem mancha para glória de Deus. “Agora é glorificado o Filho do Homem, e Deus é glorificado nele. Se Deus é glorificado nele, Deus também o glorificará em si mesmo, e em seguida lhe glorificará” (João 13:31-32). A fé creu nisto então, e encontrou seu fruto. Abel foi aceito, e foi distintivamente, sobre a base do que trouxe, de seus dons. Caim não trouxe nenhuma dessas oferta; ele tinha que ser aceito em si mesmo somente, e não foi. A fé vê este sacrifício, e encontra aceitação e bênção conforme o valor de Cristo aos olhos de Deus.

Só quero acrescentar agora que Deus nos deu a Cristo para este fim. Ele “enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1.ª João 4:10). Nisto está a obra do amor que gera a si mesmo, mas a obra efetiva do sofrimento consiste em levar a cabo, na justiça, esse amor. Deus não permita que debilitemos a confiança no amor do Pai. “O que permanece em amor, permanece em Deus, e Deus nele.” “E nós temos conhecido e crido o amor que Deus tem para conosco” (1.ª João 4:16).

É, pois, certo que Abel ― estando o homem caído ― buscou a presença de Deus e sua aceitação diante dele mediante um sacrifício, de cujo valor Deus deu testemunho, “pelo qual alcançou testemunho de que era justo” (Hebreus 11:4). Foi um sacrifício que reconheceu que a morte havia entrado, mas como foi apresentado, levava o caráter daquele que se ofereceu a si mesmo para glória de Deus. Não estava na tela do juízo os pecados atuais, mas o estado do homem e sua aceitação diante de Deus, sobre a base da morte propiciatória, na qual, a própria glória de Deus somente foi buscada, por parte do homem em obediência, e na qual o dom mais elevado da graça resplandeceu por parte de Deus em amor.

Contudo, aqui, em direta relação com nosso tema, há outro ponto, menos abstrato, possivelmente mais estreito quanto a suas resultados, mas que trata mais diretamente com a consciência, e daí sua necessidade atual. Se um homem crê de coração (digo, convencido de sua culpa) no Senhor Jesus Cristo, não virá a juízo; sabe que é perdoado e justificado, que tem paz com Deus, e se regozija na esperança de Sua glória, e confia em Deus para todo o seu caminho até o fim. “Bem-aventurado o homem a quem Jeová não atribui iniquidade” (Salmo 32:2): não que não tenha cometido nenhuma iniquidade, mas que tem ela foi levada por Outro. Outro, por graça, o substituiu tomando o seu lugar, levando sobre si mesmo a culpa, “levando, ele mesmo, em seu corpo, nossos pecados sobre o madeiro” (1.ª Pedro 2:24). Não se trata aqui da base sobre a qual se acha o gênero humano diante de Deus, como no caso de Abel, e que, como principio geral, reconhece toda a verdade; mas de pecados atuais cometidos, com os quais tratou e aos quais tirou da presença de Deus, Aquele que foi “moído por nossos pecados; o castigo de nossa paz foi sobre ele, e pelas suas chagas fomos curados” (Isaías 53:5).

Agora, pois, chame isto pela palavra que lhe apraz, mas o fato é que era Uma pessoa posta no lugar de outra, e que desta forma, toma os pecados e suas consequências sobre Si mesmo, para que o juízo dos mesmos não recaía, ainda que na menor conseqüência possível, sobre os pecadores, que são culpados, em juízo ou em consequências penais. Contudo eles recaem sobre todos aqueles que não se encontram sob este beneficio substituto, e sem os tais Deus entra em juízo a respeito deles. Pois do povo de Deus será dito: “Como agora”, não o que os homens tem feito, mas “O que Deus tem feito!” (Números 23:21-23).

A substituição, pois, é uma verdade que a Escritura ensina com máxima certeza; digo, uma pessoa assumindo o lugar da outra, Cristo levando os pecados do indivíduo em Seu próprio corpo sobre o madeiro, sendo moído por eles no lugar do culpado, o qual é curado pelas chagas que Cristo recebeu. Pois “todos nós nos desgarramos como ovelhas, cada um se desviava pelo caminho; mas Jeová carregou nele o pecado de todos nós” (Isaías 53:6).

William Kelly

(Bible Treasury vol. 17, p. 321-323)

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