O HOMEM DE DEUS
“A
fim de que o homem de Deus seja perfeito, inteiramente preparado para toda boa
obra” (2 Timóteo 3:17)
C.
H. Mackintosh
Introdução
O título que encabeça este artigo é uma expressão
que aparece na segunda epístola que o apóstolo Paulo escreveu a seu amado filho
Timóteo, a qual, como sabemos, se caracteriza por uma intensa individualidade.
Todo estudante atento das Escrituras verá o surpreendente contraste entre as
duas epístolas de Paulo a Timóteo. Na primeira, a Igreja é apresentada em sua ordem,
e Timóteo é instruído sobre como se deve comportar nela (1 Timóteo 3:15). Na
segunda, pelo contrário, a Igreja é apresentada em sua ruína. A casa de Deus
converteu-se numa “grande casa”, na qual não só há vasos para honra, mas também,
vasos para desonra; e onde, além disto, os erros e os males abundam por todas as
partes, por causa dos falsos mestres e dos cristãos professos (2 Timóteo 2).
E é precisamente nesta epístola, que tem um próprio
caráter individual, que a expressão “o homem de Deus” é empregada com essa força
e significado tão óbvios. É em tempos de ruína, de fracasso, de decadência e de
confusão gerais que a fidelidade, devoção e determinação do homem de Deus mais fazem
falta. É um sinal manifesto da graça saber que, apesar do irremediável fracasso da Igreja,
como testemunho responsável de Cristo nesta terra, o indivíduo, tem o privilégio
de seguir uma senda tão elevada, gozar de uma comunhão tão profunda, e desfrutar
de tão ricas bênçãos como jamais se pode experimentar, nem conhecer nos dias mais
brilhantes e prósperos da Igreja.
Este é um fato sumamente alentador e consolador, estabelecido
por muitas provas irrefutáveis, e que está exposto na mesma passagem de onde
tomamos o título deste artígo; uma passagem de singular valor e poder, que
citamos em continuação:
“Tu permanece no que tens aprendido e de que fostes
instruído, sabendo de quem aprendeste; e que desde a meninice sabes as Sagradas
Escrituras, as quais te podem fazer sábio para a salvação pela fé que há em
Cristo Jesus. Toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para redarguir,
para corrigir, para instruir em justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito,
inteiramente preparado para toda boa obra”
(2 Timóteo 3:14-17)[1].
Vemos aqui o “homem de Deus” no meio de toda ruína e
confusão, das heresias e das depravações morais dos últimos dias, com seus traços
individuais característicos: “perfeito, inteiramente preparado para toda boa
obra”. E podemos perguntar: que mais podemos dizer dos dias mais brilhantes da Igreja?
Se voltarmos ao dia de Pentecostes, com toda sua demonstração de poder e glória,
por acaso, encontraremos algo melhor, mais elevado ou mais sólido do que aquilo
que estas palavras descrevem: “perfeito, inteiramente preparado para toda boa
obra”?
E não é um sinal da graça para todos os que desejam
seguir fielmente a Deus, num dia obscuro e mal, saber que, apesar de todo o
mal, erro, obscuridade e confusão, possuímos aquilo que pode fazer um menino “sábio
para a salvação”, e um homem, “perfeito, inteiramente preparado para toda boa
obra”? Sem dúvida que é assim, e devemos louvar ao nosso Deus por isso, com corações
cheios e transbordantes. É uma grande bênção, em dias como estes, ter acesso à fonte
eterna do livro inspirado, onde tanto o menino como o homem pode beber e saciar-se;
a essa fonte cristalina cujo fundo não se pode ver nem alcançar por sua imensurável
profundidade; a esse Livro incomparável e apreciável, que encontra o menino no
regaço de sua mãe e o faz sábio para a salvação, e o homem na fase mais avançada
de sua carreira prática e o torna perfeito, inteiramente preparado para as exigências
de cada dia. Antes de concluir este artigo, teremos ocasião de considerar mais
particularmente o “homem de Deus”, assim como a força e o significado especial
deste termo. Estamos plenamente persuadidos de que esta expressão tem um
alcance e um significado muito mais profundo do que aquele que comumente se entende
dela.
A Escritura apresenta o homem sob três aspectos: Em
primeiro lugar, temos o homem natural,
em segundo lugar, o homem em Cristo, e
em terceiro lugar, o homem de Deus. Poderíamos
pensar, talvez, que o segundo e o terceiro são sinônimos; mas encontramos uma diferença
muito substancial entre ambos. É certo que antes de poder ser um homem de Deus,
primeiro devo ser um homem em Cristo; mas estes termos não são de maneira nenhuma
empregados indistintamente.
Consideremos, pois, em primeiro lugar o homem
natural.
I.
O homem natural
O termo «homem natural» é um termo de amplíssimo
conteúdo. Sob este título podemos encontrar todas as matizes possíveis de caráter, temperamento e atitude.
Sobre a base de sua natureza, o homem se move entre
dois extremos: ele pode ser visto no nível mais alto possível de sua cultura, ou
no ponto mais baixo de sua degradação. Podemos vê-lo rodeado de todas as vantagens,
os refinamentos e das chamadas dignidades do mundo civilizado, ou encontrá-lo
afundado nos costumes mais brutais e vergonhosos do mundo selvagem. Podemos vê-lo
nos inumeráveis graus, intervalos, classes e
castas nas quais se distribuiu a família humana. E dentro de uma mesma casta ou
classe social, podemos encontrar também os mais vívidos contrastes na forma de
ser de seu carácter, temperamento e disposição. Encontramos, por exemplo, um homem
de temperamento tão atroz que realmente causa horror a todo aquele que o conhece;
é um desgosto em seu entorno familiar e uma pesada carga para a sociedade. Pode
ser comparado a um porco espinho que tem sempre os espinhos eriçados, e si alguém
se encontra com ele uma vez, não desejará voltar a vê-lo nunca mais. Também
podemos encontrar um homem com o temperamento mais doce e o caráter mais agradável.
É tão atrativo, enquanto o outro é repulsivo. É terno e amoroso, um esposo
fiel, um pai bondoso, afetuoso e atento; um patrão respeitado e generoso; um vizinho
amável e cordial; um amigo desinteressado e querido por todos, e justamente, quanto
mais o conhecem, mais o estimam, e o que o encontra uma vez, terá prazer em
encontrá-lo sempre.
Sobre a base da natureza, podemos achar também um homem
falso e mentiroso do pé a cabeça;
que se compraz na mentira, na fraude e no engano; e ainda que não tenha um
objetivo que sirva a seus próprios interesses, nada a ganhar, prefere mentir
antes que dizer a verdade. É um homem vil e depreciável em todos os seus pensamentos,
palavras e atitudes, tanto que ninguém agradaria tê-lo por perto. Por outra
parte, podemos encontrar um homem de grandes princípios, franco, honrado,
generoso e reto, para o qual seria repugnante dizer uma mentira ou cometer um ato
vil. De reputação intocável, e de caráter excepcional. Sua palavra é de muito
valor; é uma pessoa com a qual todos gostariam de tratar, de um caráter
natural quase perfeito; um homem de quem se pode dizer: falta-lhe uma só coisa.
Finalmente, a medida que nos movemos ao longo da grande
plataforma da natureza humana, nos podemos encontrar com o ateu, que gosta de
negar a existência de Deus. Também está o infiel que nega a revelação de Deus, o
ascético e o racionalista que não creem em nada e, do outro lado, podemos achar
o devoto supersticioso que ocupa seu tempo em jejuns e orações, em ordenanças e
cerimônias, e que se sente seguro de ter ganho um lugar no céu, por haver cumprido
uma série de longos e tediosos ritos religiosos, que na realidade o fazem
incapaz de desempenhar as funções e responsabilidades próprias da vida
doméstica e social. Podemos encontrar homens com opiniões religiosas de toda a
sorte imaginável:
igreja alta, igreja baixa, igreja ampla ou simplesmente nenhuma igreja; homens
que, sem um sinal de vida divina em suas almas, lutam pelas formas sem poder de uma religião tradicional.
Diante disto, vemos que há um só feito, solene e grandioso,
comum a todas estas diversas classes, castas, graus e condições dos homens que estão
no terreno da natureza: que não há nem um só laço entre eles e o céu; nem um só
laço entre eles e o Homem que está sentado à destra de Deus; nem um só laço com
a nova criação. Todos estão sem Cristo e sem esperança. São inconversos. Não tem
a vida eterna. No tocante a Deus, a Cristo, à vida eterna e ao céu, todos ―ainda
que diferem moral, social ou religiosamente― se encontram sobre uma base comum:
estão afastados de Deus, sem Cristo, em seus pecados, na carne, são do mundo e caminham
para o inferno.
Dito isto, segue-se como consequência terrível e necessária,
que todos os que estão situados sobre o terreno da natureza, tem defronte de si
as chamas de um inferno eterno. Ninguém que ouve a voz da santa Escritura passará
por alto este grande feito. Os falsos mestres podem negá-lo. Os infiéis podem
pretender sorrir com desprezo ante tal pensamento; mas a Escritura é clara a este
respeito, tão clara como a luz do meio dia; fala, em diversos lugares, do fogo
que nunca se apaga e do verme que não
morre (veja Marcos 9:44).
Seria o cúmulo da insensatez alguém deixar de lado o
claro testemunho da Palavra de Deus com respeito a este solene e importante
tema. É muito melhor que o testemunho caia com todo seu peso e autoridade
sobre o coração e a consciência; é muito melhor escapar da ira vindoura, do que
atrever-se a negar que vem, e que, quando vier permanecerá para sempre. Sim,
para todo sempre!
Que tremendo pensamento! Que consideração mais assustadora!
Oxalá que fale com poder vivo à alma do leitor inconverso, e o leve a exclamar com
sinceridade de coração: “Que devo fazer para ser salvo?” (Atos 16:30)! A divina
resposta se encontra nas seguintes palavras que saíram dos lábios de dois dos mais
altos e dotados embaixadores de Cristo: “Arrependei-vos e convertei-vos” (Atos
3:19), disse Pedro aos judeus. “Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e
tua casa”, disse Paulo aos gentios. E, novamente, o último destes dois benditos
mensageiros, ao resumir seu próprio ministério, define todo o assunto com estas
palavras: “Testificando a judeus e a gentios acerca do arrependimento para com Deus,
e da fé em nosso Senhor Jesus Cristo” (Atos 20:21).
Quão simples, porém quão real! Quão profundo e quão
tremendamente prático! Não é uma mera fé intelectual, teórica ou puramente de nome.
Não é meramente dizer “eu creio”. Ah, não! É algo muito mais profundo e mais sério
que isto. Tememos muito que uma grande quantidade de fé que é professada nestes
dias seja apenas superficial, e que uma grande quantidade de pessoas que assistem
às reuniões e conferências sejam apenas ouvintes, junto ao caminho composto de
terreno pedregoso (Mateus 13). O arado nunca passou sobre eles. O pousio[2] nunca foi arado (veja
Oséias 10:12). A flecha da convicção não os alcançou profundamente; nunca foram
quebrantados. Nunca deram um giro completo, nem sofreram uma mudança radical. As
perguntas do Evangelho a tais pessoas é como lançar preciosas sementes num
terreno duro ou sobre um caminho pisoteado. Nunca penetra nas profundidades da
alma, não alcança a consciência nem o coração, a semente fica na superfície, e é
arrastada pelo primeiro vento que assopra.
E isto não é tudo. Temos também muito temor de que grande
número dos pregadores destes dias, em seus esforços para simplificar o evangelho,
perdem de vista a eterna necessidade do arrependimento, e a necessidade essencial
da ação do Espírito Santo, sem a qual, a necessária fé torna-se num mero exercício
humano que desaparece como a névoa da manhã, deixando a alma ainda na região da
natureza, satisfeita consigo mesma, recoberta com o lodo solto de um evangelho simplesmente
humano que diz “Paz! paz! quando não há paz”, quando o perigo é iminente (veja
Ezequiel 13:10; Jeremias 6:14).
Tudo isto é muito sério, e deveria conduzir a um
profundo exercício de alma. Chamamos a atenção do leitor para que dê a esta questão
uma séria e imediata consideração. Suplicamos-lhe que responda agora à seguinte
pergunta: “Você possui a vida eterna?” “A tem?”. “O que crê no Filho
tem a vida eterna” (João 3:36). Que grande realidade! Se não a possui, não tendes
nada. Ainda está sobre a base da natureza, da qual tanto temos falado. Sim, ainda
está ali, não importa se és o melhor exemplo que podemos apresentar: amável,
culto, atento, franco, generoso, leal, honesto, encantador, querido, ilustrado,
instruído, e inclusive piedoso num sentido puramente humano. Podes ser tudo isto
e, no entanto, não ter uma só pulsação de vida eterna em sua alma.
Isto pode soar duro e severo. Contudo é a verdade.
Tarde ou cedo descobrirás que é a verdade. Queremos que você saiba disto agora. Que vejas que estás na total falência, no mais amplo sentido do termo. Uma declaração
de juízo é formulada contra você no tribunal superior do céu. “Os que estão na
carne não podem agradar a Deus” (Romanos 8:8). Tens ponderado alguma vez estas palavras?
Tens visto alguma vez estas palavras aplicadas a sua própria vida? Enquanto permanece
sem arrepender-se, sem converter e sem crer,
não pode fazer nem uma só coisa que agrade a Deus. Nem uma só. ”Na carne” e
“sobre a base da natureza” significa a mesma coisa; e enquanto estiver ali, nessa
condição, não podes agradar a Deus. “É necessário nascer de novo” (João 3:7); deve
ser renovado desde o mais profundo de seu ser. Uma natureza não renovada é
absolutamente incapaz de ver o reino de Deus, e de entrar nele. Deve nascer “da
água e do Espírito”, isto é, pela Palavra viva de Deus e pelo Espírito Santo. Não
há nenhuma outra forma de entrar no reino. Alcançamos o bendito reino de Deus,
não mediante o melhoramento de nós mesmos, mas pelo novo nascimento. “O que é nascido
da carne, é carne”, e “a carne para
nada serve”, porque “os que estão na carne não podem agradar a Deus” (João
3:6; 6:63; Romanos 8:8).
Quão claro! Quão inequívoco! Quão rotundo! Quão pessoal é tudo isto! Sinceramente
desejamos que o leitor que não foi despertado, ou que se mostra indeciso, possa
recebê-lo em seu coração hoje mesmo, como se fosse à única pessoa sobre a face
da terra! De nada lhe servirá generalizar e contentar-se simplesmente em dizer
que “todos somos pecadores”. Não. É um assunto sumamente pessoal. “É necessário
nascer de novo”; e se perguntar de novo: “Como?”, ouça a resposta divina dos lábios
do mesmo Mestre: “E como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário
que o Filho do Homem seja levantado, para que todo aquele que nele crê não se perca,
mas tenha a vida eterna” (João 3:14-15).
Este é o remédio divino para um coração quebrantado
e uma consciência afligida; para todo pecador irremediavelmente perdido, que
merece o inferno; para todo aquele que reconhece sua ruína, que confessa seus
pecados, e que se julga a si mesmo. Toda alma cansada e carregada, agoniada pelo
peso de seus pecados, tem aqui a bendita promessa de Deus. Jesus morreu, para
que pudéssemos viver. Foi condenado, para que pudéssemos ser justificado. Bebeu
o cálice da ira, para que pudéssemos beber “o cálice da salvação”. Contemple-o pregado
numa cruz por nós. Veja o que ele fez em nosso favor: Satisfez todas as exigências
— as infinitas e eternas exigências — do
trono de Deus; carregou todos os nossos pecados; levou sobre si todas as nossas
culpas; nos substituiu diante de Deus, e pôs fim a nossa completa condição de
pecador. Veja que Sua morte expiatória respondeu perfeitamente a tudo o que era
ou que pudesse ser contra nós. Vejamo-lo agora ressuscitado de entre os mortos, tendo uma vez
por todas acabado tudo. Vejamo-lo ascendendo
aos céus, levando em sua divina pessoa as marcas de uma propiciação consumada. Contemplemo-lo
assentado no trono de Deus, no lugar mais alto do poder, coroado de honra e de
glória. Crendo nele, e receberemos o dom da vida eterna, o selo do Espírito
Santo e o penhor da
herança. Passaremos, assim, do terreno do homem natural, para sermos “um novo homem
em Cristo” (2 Coríntios 12:2).
II. Um homem em Cristo
A todos aqueles cujos olhos foram abertos para ver sua
verdadeira condição natural, que foram convencidos do pecado pelo poder do Espírito
Santo, e que não conhecem o verdadeiro significado de um coração quebrantado e
de um espírito contrito, será profundamente interessante conhecer o divino segredo
do repouso e da paz. Se é verdade — e é porque Deus diz — que “os que estão na
carne não podem agradar a Deus” (Romanos 8:8), como fazer, pois, para não estar
na carne? Como pode alguém não traspassar os limites de sua natureza caída? Como
pode alcançar a bendita posição daqueles de quem o Espírito Santo declara: “Mas
vós não estais na carne, mas no Espírito” (Romanos 8:9)?
Estas, seguramente, são perguntas transcendentais.
Porque devemos saber e recordar que nenhuma melhora de nossa velha natureza tem
algum valor quanto a nossa posição diante de Deus. Isto significa, no que se
refere a esta vida, que um homem faça todos os esforços possíveis para melhorar
a si mesmo, cultivando sua mente, desenvolvendo sua memória, elevando seu tom
moral, progredindo em sua posição social. Tudo isto é perfeitamente correto, e
não admite discussão nem dúvida alguma.
Mas mesmo quando admitimos plenamente a verdade a
respeito de tudo isto, não altera em nada a solene e firme declaração do inspirado apóstolo de que “os
que estão na carne não podem agradar a Deus” (Romanos 8:8).
Deve haver uma posição totalmente nova, e esta nova
posição não pode ser alcançada por nenhuma mudança da velha natureza — nem por
seus Atos, palavras, sentimentos, por nenhuma ordenança religiosa, rezas, esmolas nem sacramentos—. Faça o que quiser com
sua natureza e esta seguirá sendo a mesma. “O que é nascido da carne, é carne”;
e podes também fazer o que for com a carne, e não poderás torná-la espiritual. Deve
haver uma nova vida, uma vida que flui do novo homem, do último Adão, o qual,
por sua ressurreição, veio a ser a Cabeça de uma nova raça.
Como podemos obter esta vida tão preciosa? Ouça a
memorável resposta; sim, ouçamo-la querido leitor angustiado, e viva: “Em
verdade, em verdade vos digo: Quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou,
tem a vida eterna; e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida”
(João 5:24).
Aqui temos uma mudança total de posição: passamos da
morte para a vida, de uma posição da qual não existe nem um vínculo com o céu, com
a nova criação, nem com o Homem ressuscitado na glória, para uma posição na qual
não existe nenhum vínculo com o primeiro homem, com a velha criação e com o
presente século mal. E tudo isto por crer no Filho de Deus: não simplesmente
por dizer que cremos, mas por crer verdadeiramente e de todo coração no Filho
de Deus; não é por uma fé intelectual, teórica ou apenas nominal, mas crendo com
o coração. Só assim é possível chegar a ser “um novo homem em Cristo”.
Todo verdadeiro crente é um novo homem em Cristo, seja um convertido hoje ou um ancião de cabelos
brancos que está no caminho do Senhor há cinquenta ou sessenta anos, ambos se encontram
exatamente na mesma posição em Cristo. Não pode haver nenhuma diferença aqui. O
estado prático de cada um pode diferir enormemente; mas a posição que ocupam em
Cristo é exatamente a mesma. No plano da mera natureza — como dizemos — podemos
encontrar pessoas de todos os tipos, graus, classes e condições imagináveis, contudo todas estão
na mesma posição. No novo plano divino, celestial, a condição prática de cada um
também varia de diversas formas. Podemos encontrar crentes com enormes diferenças
em inteligência, experiência e poder espiritual, mas todos possuem a mesma posição
diante de Deus: todos estão em Cristo. Não pode haver nenhuma diferença de grau
quanto à posição, ainda que haja quanto ao estado espiritual de cada um.
Repetimos, tanto o novo convertido como o ancião que é seu pai em Cristo, estão
em pé de igualdade quanto a sua posição em Cristo. Cada um é um novo homem em
Cristo e nenhum pode estar sobre o outro nesta questão. Às vezes ouvimos falar
de “vida cristã superior”, mas, falando estritamente, não há tal coisa como uma
vida cristã mais elevada ou mais baixa,
porque Cristo é a vida de cada crente.
Pode ser que os que utilizem estes termos queiram referir-se a algo correto. Provavelmente
se referem às etapas superiores da
vida cristã; a uma maior aproximação de Deus, uma melhor semelhança com Cristo,
um maior poder no Espírito, uma maior consagração, uma maior separação do
mundo. Porém todas estas coisas tem que ver com nosso estado, e não com nossa posição
em Cristo, a qual é absoluta, eterna e imutável. Se não estamos em Cristo,
estamos em nossos pecados; mas se estamos em
Cristo, não podemos alcançar um grau mais elevado quanto a esta posição.
Se o leitor voltar uns instantes a 1 Coríntios
15:45-48, encontrará um poderoso ensino sobre esta grande verdade fundamental. O
apóstolo fala aqui de dois homens: “O primeiro homem” e “o segundo homem”. E note-se
com atenção que o segundo Homem não tem absolutamente nenhum vinculo com o primeiro,
pelo contrário, está em contraste com ele. Ele mesmo é a fonte da vida nova,
divina, independente e celestial. O primeiro homem foi inteiramente classificado
como uma criatura culpável e perdida. Referimo-nos a Adão como cabeça de toda raça
humana. Quanto à questão pessoal cremos
que foi salvo pela graça, mas se o vermos como o representante da raça humana,
veremos que ele fracassou irremediavelmente. O primeiro homem é uma completa ruína. Isto demonstra a necessidade de haver um segundo Homem; porque podemos verdadeiramente
dizer dos dois homens, o mesmo que se diz dos dois pactos: “Porque se aquele primeiro
houvesse sido sem defeito, certamente não buscaria lugar para o segundo” (Hebreus
8:7). O próprio fato da introdução do segundo Homem constitui a prova do
completo fracasso do primeiro. Por que era necessário um segundo se se pudesse
alcançar a promessa com o primeiro? Se nossa
velha natureza adâmica fosse possível de ser melhorada, não havia havido nenhuma
necessidade de algo novo. Porque “os que estão na carne não podem agradar a Deus”.
“Porque em Cristo Jesus nem a circuncisão e nem a incircuncisão tem valor algum,
mas o ser uma nova criatura” (Romanos 8:8; Gálatas 6:15).
Ha um imenso poder moral em toda esta linha de ensino.
Esta coloca aquele que está em Cristo num surpreendente e vivo contraste com
toda forma de religiosidade debaixo do sol. Tomemos o judaísmo ou qualquer outro
tipo de religião conhecida ou que agora exista no mundo, e o que é que
encontramos neles? Todas invariavelmente
são concebidas com o propósito de por a prova, melhorar ou reformar o primeiro homem.
Mas, o que significa pertencer a Cristo? Significa
algo inteiramente novo, celestial, espiritual, divino. Está baseado na cruz de
Cristo, na qual o primeiro homem chegou ao seu fim, onde o pecado foi julgado e
apagado completamente e onde o velho homem foi crucificado e posto fora da presença
de Deus para sempre, no que diz respeito a todos os crentes. Para a fé, a cruz põe
fim à história do primeiro homem. “Com Cristo estou juntamente crucificado” — disse
o apóstolo—, e também: “Os que são de Cristo crucificaram a carne com suas paixões
e desejos” (Gálatas 2:20; 5:24).
São estas meras figuras retóricas ou as poderosas palavras
do Espírito Santo, que declaram o grande fato de que nossa velha natureza foi eliminada por não valer absolutamente nada e
está condenada? Sem dúvida que é esta última afirmação. A Igreja começa com o
sepulcro aberto do segundo Homem, para continuar sua brilhante carreira para a
glória eterna. É, decididamente, uma nova criação, na qual não há um só ápice
das coisas velhas, pois “todas as coisas provém de Deus” (2 Coríntios 5:18), e,
se “todas as coisas” provém de Deus, não pode haver absolutamente nada do homem.
Que repouso! Que consolo! Que força! Que elevação
moral! Que doce alivio para as pobres almas carregadas que buscam de maneira vã,
por anos a fio, encontrar a paz mediante a melhora de si mesma! Que libertação
da miserável escravidão do legalismo em todas as suas fases é obtida ao
encontrar o precioso segredo de que meu eu culpado, perdido e arruinado -
aquilo que eu, por todos os meios possíveis, tenho estado tratando de melhorar—,
foi deixado de lado completamente e para sempre; que Deus não busca nenhum concerto
para ele; que o condenou e o fez morrer na cruz de seu Filho! Que resposta temos
aqui para o monge, ou asceta e o ritualista! Oh, se esta senda celestial, divina,
espiritual, fosse compreendida em todo o seu poder emancipador; se só fosse conhecida
em seu poder e realidade viventes, seguramente libertaria a alma das mil e uma
formas de corrupção religiosa mediante a qual o principal enganador e inimigo
está arruinando milhões de almas! Podemos dizer verdadeiramente que a obra
mestra de Satanás, seu esforço mais exitoso contra a verdade do Evangelho,
contra a igreja do Novo Testamento, se vê no fato de conduzir as pessoas
inconversas a adotar e aplicar a si mesmas ordenanças da religião cristã e a professar
muitas de suas doutrinas. Desta forma, cega seus olhos e impede que vejam sua verdadeira
condição, arruinada, perdida e culpável, e logra acertar um golpe mortal ao
puro Evangelho de Cristo. O melhor remendo que se pode fazer no “vestido velho”
da natureza arruinada do homem, é a profissão exterior de uma fé sem a vida
divina; e quanto melhor for o remendo, pior se torna a rotura (veja Marcos
2:21).
Escutemos atentamente as significativas palavras do
apóstolo Paulo, o melhor Mestre e o mais competente exponente das doutrinas
acerca da Igreja que o mundo jamais viu: “Porque eu pela lei estou morto para a
lei, a fim de viver para Deus. estou crucificado juntamente com Cristo, e vivo não
mais eu, mas vive Cristo em mim” - note-se que ele diz: “não eu… mas Cristo”— “e
o que agora vivo na carne, vivo na fé do Filho de Deus, o qual me amou e se entregou
a si mesmo por mim” (Gálatas 2:19-20)[3].
Ser crente é isto e não outra coisa; não o “velho homem”
— a velha natureza, o primeiro Adão —, que se faz religioso, por mais que sua religião
seja a profissão das doutrinas bíblicas e a adoção de suas ordenanças. Não; é a
morte, crucificação e
sepultura do velho homem — do velho eu, da velha natureza
—, e chegar a ser um novo homem em Cristo. Todo verdadeiro crente é um novo homem
em Cristo. Saiu completamente do terreno da velha criação — do velho estado de
pecado e de morte, de culpa e de condenação—, e passou ao terreno da nova criação,
a um novo estado de vida e de justiça num Cristo ressuscitado e glorificado, a Cabeça
de uma nova criação, o último Adão.
Esta é a posição inalterável do mais débil crente em
Cristo. Não há absolutamente nenhuma outra posição para o cristão. Devo estar no
primeiro homem ou no segundo; não há um terceiro homem, porque o segundo Homem é
o último Adão. Não há meio termo. Estou em Cristo ou em meus pecados. Se estou em
Cristo, sou como ele é diante de Deus. “Como ele é, assim somos nós neste mundo
(1 João 4:17). Não diz “como ele foi”, mas “como ele é”; o cristão é
considerado por Deus um com Cristo em todo sentido, exceto em sua Deidade, naturalmente, a qual é incomunicável. O adorável
Salvador ocupou o lugar do crente na cruz, levou nossos pecados, morreu em nosso
lugar, pagou nossa culpa e nos representa em toda causa. Tomou todos os nossos
pecados, todas as nossas dívidas, tudo o que pertencia ao pecador como homem
natural, foi nosso substituto no mais amplo e elevado sentido do que este termo
significa. E uma vez que resolveu divinamente nosso caso e levou nosso juízo, ressuscitou
de entre os mortos, e agora é a Cabeça, o Represente e a única verdadeira definição
do crente diante de Deus. Desta gloriosa e libertadora verdade, a santa
Escritura dá o mais amplo testemunho. A passagem recém citada de Gálatas
constitui uma gloriosa, poderosa e resumida declaração desta verdade. E se o leitor
voltar ao capítulo 6 de Romanos, encontrará mais provas disto. Citaremos algumas
das porções mais relevantes.
“Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado para
que a graça abunde? De maneira nenhuma. Como viveremos no pecado nós os que
para ele morremos? Ou não sabeis que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus,
fomos batizados em sua morte? Porque fomos sepultados juntamente com ele na morte
pelo batismo, a fim de que como Cristo ressuscitou dos mortos para a glória do Pai,
assim também andemos nós em novidade de vida. Porque se fomos plantados
juntamente com ele na semelhança de sua morte, assim também o seremos na de sua
ressurreição; sabendo isto, que nosso velho homem foi crucificado juntamente com
ele, para que o corpo do pecado seja destruído, a fim de que não sirvamos mais ao
pecado. Porque quem morreu, justificado está do pecado. E se morremos com
Cristo, cremos que também viveremos com ele; sabendo que Cristo, havendo ressuscitado
dos mortos, já não morre; a morte não tem domínio sobre ele. Porque quanto a
ter morrido, morreu uma vez para o
pecado; mas quanto a viver, vive para Deus. Assim também vós considerai-vos mortos
para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Romanos
6:1-11).
Observemos especialmente as seguintes palavras da passagem
citada: “os que morremos”; “somos sepultados juntamente com ele”; “como Cristo ressuscitou…
assim também nós”; “nosso velho homem foi crucificado juntamente com ele”; “moremos
com Cristo”; “mortos ao pecado”. Será que agora
entendemos realmente seu verdadeiro alcance e significado? Advertimos, porém,
sua aplicação para nós? São perguntas que esquadrinham o coração, contudo, são muito
necessárias. A verdadeira doutrina do capítulo 6 de Romanos é pouco compreendida.
Há milhares de pessoas que professam crer na eficácia da morte expiatória do Senhor
Jesus Cristo, todavia não veem nela nada mais além do perdão de seus pecados. Não
veem a crucificação, morte e sepultura do velho homem; a destruição do “corpo do
pecado”; a condenação do pecado; a inteira abolição do velho sistema de coisas pertencentes
a sua primeira condição adâmica; em uma palavra, sua perfeita identificação com
um Cristo morto e ressuscitado. Por isso pedimos a todos os leitores a
considerar com a maior atenção esta importantíssima linha de verdade, a qual
reside na própria base da verdadeira profissão de fé, e forma uma parte
integral da verdade do Evangelho.
Vejamos ainda algumas provas mais sobre este ponto.
Escutemos o que disse o apóstolo aos colossenses: “Se morrestes com Cristo para
os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos submeteis a preceitos
tais como: Não toques, não proves, não manuseies (em conformidade com os mandamentos
e doutrinas de homens)” - assim é como nos falam os preceitos humanos, dizendo-nos
que não manejemos isto, que não provemos aquilo, que não toquemos aquiloutro,
como se houvesse algum principio divino implicado em tais coisas— “coisas que
se destroem com o uso? Tais coisas tem na verdade certa reputação de sabedoria em
culto voluntario, em humildade e em duro trato (disciplina) do corpo; mas não tem valor algum contra os apetites
da carne (sensualidade). Se, pois, ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas
de cima, onde Cristo está sentado à destra
de Deus. Pensai nas coisas lá de cima, e não nas da terra; porque morrestes, e vossa vida está
escondida com Cristo em Deus” (Colossenses 2:20-3-3).
Aqui novamente cabe perguntarmos até que ponto temos
captado o verdadeiro sentido, o alcance e a aplicação de palavras tais como estas:
“Por que, como se vivêsseis no mundo…?”.
Vivemos no mundo ou no céu? Onde? O verdadeiro cristão é aquele que deixou o
presente século mau - que morreu para o mundo—, e não tem nada que ver com ele,
da mesma maneira que fez o Senhor Jesus Cristo. “Como Cristo… assim também somos
nós” (Romanos 6:4). Ele está morto à lei, morto ao pecado: vivo em Cristo, vivo
para Deus, vivo na nova criação (veja Gálatas 2:19; Romanos 6:11). O cristão pertence
ao céu; está inscrito como cidadão do céu. Sua religião, sua política, seus costumes
e princípios morais, tudo é do céu. É um homem celestial que caminha na terra, e
que cumpre todos os deveres pertencentes às diversas relações em que a mão do Pai
o colocou, e nas quais a palavra de Deus o reconhece plenamente e o guia amplamente,
tais como esposo, pai, patrão, filho, servo e outras atividades similares. O cristão
não é um monge, um ascético, nem um ermitão. É, repetimos, um homem espiritual,
celestial, que está no mundo, mas que não é do
mundo. É um estrangeiro no que respeita a sua residência aqui embaixo. Está
no corpo, segundo a sua condição, mas não está na carne no que diz respeito ao
principio de sua posição. É “um homem em
Cristo”.
Antes de concluir esta seção, queremos chamar a atenção
do leitor para o capítulo 12 de 2 Coríntios, onde encontrará, imediatamente, a real posição do crente e sua possível condição. Sua posição é fixa e inalterável,
tal como estabelece essa expressão de amplo alcance: “Um homem em Cristo”. A condição
do crente pode oscilar entre os dois extremos apresentados nos primeiros e nos
últimos versículos deste capítulo. Um cristão pode estar no terceiro céu, no
meio das visões seráficas desse bendito e santo lugar, ou se não zelar por esta
posição, afundados em todas as coisas más e grosseiras mencionadas nos
versículos 20 e 21.
Pode ser que alguém pergunte: “É possível que um verdadeiro
filho de Deus se encontre alguma vez numa condição moral tão baixa como essa?” Lamentavelmente,
querido leitor, isso é perfeitamente possível! Não há tipo de pecado ou de loucura na qual um cristão
não possa cair em qualquer momento, se não for guardado pela graça de Deus. Até
o próprio apóstolo, quando desceu do terceiro céu, necessitou de “um aguilhão
(espinho) na carne”, para não se enaltecer sobremaneira. Jamais poderíamos
esperar que um homem que foi arrebatado até essa brilhante e bendita região,
voltasse a ser presa de seus sentimentos de orgulho. Mas a verdade é que nem
mesmo o terceiro céu é capaz de remediar a carne. Esta é absolutamente incorrigível,
e deve ser julgada e mantida em sujeição dia a dia, hora após hora, momento a
momento; do contrário, teremos muito trabalho
penoso que fazer.
Entretanto, nada pode alterar a posição do crente. Ele
está em Cristo para sempre, justificado, aceito e perfeito nEle, e nunca poderá
ser outra coisa. Além disto, sempre deve julgar seu estado em função de sua posição,
e nunca sua posição em função de seu estado. O esforço para alcançar uma posição
dependendo do seu estado, é legalismo;
enquanto que, negar-se a si mesmo e julgar seu estado em função da sua posição,
é [4]antinomianismo. Os dois —ainda que tão
diferente um do outro— são igualmente falsos, opostos à verdade de Deus,
ofensivos ao Espírito Santo e completamente alheios ao pensamento divino do “homem
em Cristo”.
III. O homem de Deus
Havendo-nos referido a temas profundamente interessantes
como o homem natural e um homem em Cristo, nos resta agora
considerar, em terceiro e último lugar, um tema sumamente prático, sugerido pelo
título deste escrito, a saber: o homem de
Deus.
Seria um grave erro supor que todo cristão é um homem
de Deus. Mesmo nos dias de Paulo e Timóteo havia muitos que levavam o nome de cristãos,
mas que na realidade estavam muito longe de conduzirem-se como homens de Deus, digo,
como aqueles que eram verdadeiramente homens de Deus no meio do fracasso e do erro,
que então haviam começado a introduzir-se furtivamente. A percepção deste fato é
que faz com que a segunda epístola a Timóteo seja profundamente interessante. Nela
encontramos uma ampla provisão para o homem de Deus nos dias da sua
peregrinação aqui neste mundo, seja, em tempos perigosos, obscuros e maus,
seguramente, nos quais, todos “os que querem
viver piedosamente” deve manter os olhos fixos no Senhor Jesus Cristo, em seu Nome,
na sua Pessoa, em sua Palavra, se quiserem avançar contra a corrente adversa.
É quase impossível ler a segunda epístola a Timóteo
sem sentir-se impressionado pelo seu caráter intensamente individual. O
próprio começo da epístola é notadamente característico: “Dou graças a meu Deus, ao qual sirvo, desde os
meus antepassados com consciência limpa, de que sem cessar, lembro-me de ti nas minhas orações noite e dia”
(1:3).
Quão emotivas e fervorosas palavras! Quão comovedor é escutar um homem
de Deus derramando os ternos e profundos sentimentos de seu amoroso e grande coração,
no coração de outro homem de Deus! O querido apóstolo estava começando a sentir
a fria indiferença que se estava estendendo rapidamente sobre a igreja professante.
Estava provando a amargura das esperanças frustradas. Sentiu o abandono de muitos
que uma vez haviam professado ser seus amigos e companheiros nessa gloriosa
obra, à qual havia dedicado todas as suas energias. Muitos se envergonham do “testemunho
de nosso Senhor” e de Seu prisioneiro. Não é por que deixaram de ser cristãos
ou abandonaram a profissão cristã; mas, porque viraram as costas para
apóstolo Paulo, deixando-o só no dia da prova.
Agora sim, nessas circunstâncias, o coração volta-se com especial
ternura para uma fé e um afeto individual. Se alguém estiver rodeado de
sinceros servos de Cristo, de uma grande nuvem de testemunhas, de um grande exército
de bons soldados do Senhor Jesus Cristo; se a corrente da devoção fluir ao
redor de alguém e simplesmente o levar ao seu seio, não dependerá tanto das simpatias
e da comunhão individual. Mas quando o estado geral de coisas é baixo, quando a
maioria mostra-se infiéis, quando os antigos companheiros nos abandonam, é então,
quando a graça pessoal e o verdadeiro afeto são, especialmente, de muito valor.
O fundo obscuro da decadência geral põe em relevo a devoção individual.
Isto é o que vemos na preciosa epístola que estamos considerando. Faz bem
ao coração escutar as instruções do velho prisioneiro de Jesus Cristo, que fala
em servir a Deus desde seus antepassados com consciência
limpa, e da incessante recordação de seu amado filho e fiel companheiro de jugo.
É muito interessante notar que, seja em referência a sua própria
historia ou a de seu amado amigo, Paulo sempre retrocede a atos praticados
antes da data referida, relacionando os fatos com a experiência individual de
cada um, anteriores ao tempo em que se conheceram, como também àquilo que poderíamos
chamar, suas associações eclesiásticas - todos os atos importantes e interessantes
em seu devido lugar. Paulo servia a Deus desde seus antepassados com consciência limpa, antes de conhecer outros cristãos, e continuava
servindo-o mesmo quando todos os seus companheiros na fé o abandonaram. Assim também,
no caso de Timóteo, seu fiel amigo, diz: “Trazendo à memoria a fé não fingida que há em ti, a qual habitou primeiro
em tua avó Loide e em tua mãe Eunice, e estou seguro de que habita em ti também”
(1:5).
Quão belo e comovedor é tudo isto! Ficamos abismados com estas referências
à vida anterior destes amados homens de Deus. A “consciência limpa” de um e a “fé
não fingida” do outro, constituem duas grandes qualidades morais que devem possuir
todos aqueles que são verdadeiros homens de Deus em dias tão obscuros e maus. A
primeira faz imediata referência ao único Deus vivo e verdadeiro em todas as coisas;
a outra encontra todos os seus recursos nEle. Uma nos faz caminhar diante de Deus, a outra nos permite caminhar
com Ele. Ambas são indispensáveis na formação
do caráter do verdadeiro homem de Deus.
É impossível subestimar a importância de manter uma consciência limpa diante
de Deus em todos os nossos caminhos. É de um valor inestimável. Uma consciência
pura conduz-nos a referenciar tudo a Deus. Nos guarda de ser sacudidos de um
lado a outro por todas as ondas e correntes de opiniões humanas. Comunica estabilidade
e consistência a todo o nosso caminho e caráter. Todos estamos em iminente perigo
de cair sob a influência humana, de adaptar nossos caminhos aos pensamentos de nossos
semelhantes, de adoptar suas ideias e seus passatempos.
Todo isto destrói o caráter de um homem de Deus. Se adotarmos o tom e o
carácter de nossos semelhantes; se consentirmos em ser formados num molde
meramente humano; se nossa fé apoiar na sabedoria do homem; se nosso objetivo é
satisfazer ao homem, então, em lugar de sermos homens de Deus, nos tornemos membro
de um partido ou de uma associação exclusivista. Será perdida a encantadora
frescura e originalidade tão essencial a um servo de Cristo, e estaremos
caracterizados pelas características distintas e sobressalentes de uma seita[5].
Guardemo-nos cuidadosamente disto, que tem arruinado muitos servos
valiosos. Muitos que poderiam ser realmente trabalhadores úteis na vinha, falharam
completamente por não manter a integridade do seu caráter e de seu caminho
individual. Eles começaram com Deus; iniciaram sua carreira tendo uma consciência
limpa e na busca dessa senda que a mão divina havia traçado para eles. Havia neles
folhas verdes, flores e sombra nos primeiros tempos muito refrescante e
alentador para todos os que se relacionaram com eles. Foram ensinados por Deus.
Acessavam a fonte eterna da Santa Escritura e bebiam dela por si mesmos. Talvez
não tivessem muito saber, mas o que sabiam
era real, porque recebiam de Deus, e era muito proveitoso, porque “muito alimento se encontra
na terra virgem dos pobres” (Provérbios 13:23).
Contudo, em
vez de seguir com Deus, cederam a influência humana. Adquiriram a verdade de
segunda mão, e tornaram vendedores dos pensamentos de outros homens. Em vez de
beber da própria Fonte, beberam das correntes da opinião humana; perderam a originalidade,
a simplicidade, o frescor e o poder, e tornaram-se meras cópias, se não miseráveis
caricaturas. Em vez de derramar esses “rios de agua viva” que fluem de todo verdadeiro
crente no Senhor Jesus caiu nos estéreis aspectos técnicos, e nas secas e metódicas expressões formuladas da mera religião
sistematizada.
Querido leitor cristão, devemos guardar-nos cuidadosamente de todas
estas coisas. Temos de vigiar, orar para ser guardados delas, crer que são
perniciosas, e viver na contramão delas. Procuremos servir a Deus com consciência
limpa; vivendo em Sua própria presença, à luz do seu bendito rosto, na santa intimidade
da comunhão pessoal com ele, pelo poder do Espírito Santo. Podemos estar
seguros de que este é o verdadeiro segredo do poder do homem de Deus em todo tempo
e em qualquer circunstância. Devemos caminhar
com Deus no profundo e próprio sentido de nossa responsabilidade pessoal diante
dele. Isto é o que entendemos por “consciência limpa”.
Todavia, irá isto, ainda que seja no
mínimo grau, diminuir nosso sentido do valor da verdadeira comunhão, da santa comunhão
com todos aqueles que são fiéis a Cristo? De maneira nenhuma, na realidade, é
precisamente o contrário, pois comunica poder, energia e profundidade de tom à comunhão.
Se todo “homem em Cristo” se conduzisse cabalmente como um “homem de Deus”, que
bendita comunhão haveria então! Que trabalho de coração! Que brilho e que
inequívoco poder! Quão diferente do frio formalismo de um sentimento meramente
nominal dado a certos dogmas acreditados a um partido, por um lado, e do espírito
de corpo[6] dos
círculos exclusivistas, por outro!
Há poucos termos tão comumente usados e
tão pouco compreendidos como a palavra “comunhão”.
Em inumeráveis casos, indica simplesmente o circulo de membros nominais em algumas
denominações religiosas, uma prática que não oferece nenhuma garantia de que haja
uma comunhão viva com Cristo ou uma devoção pessoal a sua causa. Se todos os
que estão nominalmente “em comunhão” se conduzissem cabalmente como homens de Deus,
quão diferente seria o estado de coisas, teríamos o privilegio da sua presença!
O que é a comunhão? Significa em sua expressão mais elevada, ter um
objetivo comum com Deus e compartilhar a mesma porção, sendo Cristo mesmo esse
objetivo e essa porção: o Cristo conhecido e em quem nos regozijamos pelo Espírito
Santo. Esta é a comunhão com Deus. Que
privilegio! Que dignidade! Que bênção inefável, Deus nos permitir ter esse objeto
comum e, ainda, uma parte comum com Deus mesmo! Deleitar-se nAquele em quem Ele
se deleita! Não pode haver nada mais elevado, nada melhor, nada mais precioso
que isto. Nem mesmo no céu conheceremos algo superior. Nossa própria condição
será, graças a Deus, completamente diferente. Deixaremos este corpo de pecado e de morte, e seremos
revestidos com um corpo de glória. Teremos rompido definitivamente com o mundo de pecado, de dor e de distração,
onde tudo está diretamente em oposição a Deus e a nós, e respiraremos a atmosfera
pura e carregada de alegria daquele radiante e bendito mundo de cima. Mas, no
que diz respeito a nossa comunhão, como é agora será então, “com o Pai, e com seu
Filho Jesus Cristo”, “na luz” (1 João 1:3, 7), e pelo poder do Espírito Santo.
Temos feito bastante referência à nossa
comunhão com Deus. Quanto a nossa comunhão uns com os outros, ela só pode ser
real, somente enquanto andamos na luz, tal como lemos em1 João 1:7: “Se andamos na luz como ele está na luz, temos
comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus Cristo seu Filho nos limpa de
todo pecado”. Só poderemos ter comunhão uns com outros se andarmos na bendita
presença de Deus. Pode haver muita proximidade ou relação social sem um pingo
de comunhão divina. Lamentavelmente,
muito daquilo que pretende ser comunhão cristã, não é mais que pura expressão
religiosa, a supérflua, inútil e dissecante nódoa do mundo religioso, nada pode
ser mais infrutífero! É verdade que a verdadeira comunhão cristã somente pode
ser gozada na luz. Só quando estamos andando individualmente com Deus no poder
da comunhão pessoal, temos realmente comunhão uns com os outros; e esta comunhão
consiste em regozijar em Cristo verdadeiramente no coração, como nosso único
objeto e como nossa porção comum. Não é o emprego puramente intelectual de certas
doutrinas preferidas que recebemos para ter tudo em comum. Não é a simpatia
mórbida com aqueles que pensam, veem e sentem como nós respeito por alguma teoria ou dogma favorito. É
algo completamente diferente de tudo isto. É deleitar-se em Cristo, juntamente com
todos aqueles que andam na luz; apegar-se a sua Pessoa, a seu Nome, a sua Palavra,
a sua causa, aos seus. É uma consagração conjunta, de coração e de alma, Àquele
“que nos amou, e nos lavou de nossos pecados com seu sangue” e nos trouxe à luz
da presença de Deus, para que andemos ali com ele e uns com os outros. Nada
menos que isto é a comunhão cristã; e quando realmente é compreendida, nos conduzirá
a fazer uma pausa e considerar o que dizemos quando num determinado caso
afirmamos: “tal pessoa está em comunhão”.
Contudo devemos prosseguir com nossa
epístola e ver a plena provisão que há nela para o homem de Deus, por mais obscuro
que seja o tempo no qual ele viver.
Temos visto a importância, ou melhor,
dizendo, a indispensável necessidade de ter uma “consciência limpa” e uma “fé não
fingida” no caráter moral do homem de Deus. Estas qualidades conferem a mesma estrutura de todo edifício da piedade prática que
sempre deve caracterizar a um autêntico homem de Deus.
Porém há ainda mais que isto. O edifício
deve ser levantado, da mesma forma que se lançou o fundamento. O homem de Deus tem
que trabalhar em meio de todo tipo de dificuldades, provas, penas, desalentos,
obstáculos, perguntas e controvérsias. Tem um vazio para encher, um caminho a trilhar,
um trabalho que fazer. Venha o que vier, deve servir. O inimigo pode opor, o
mundo pode vê-lo com maus olhos, a Igreja pode estar em ruinas ao redor dele,
falsos irmãos podem por obstáculos, frustrar esforços e resisti-lo; podem
surgir pelejas, controvérsias e divisões que obscureça a atmosfera; mas, apesar
de todas estas coisas, o homem de Deus deve seguir adiante, trabalhando, servindo,
testificando, dentro da esfera de atividade em que a mão de Deus o colocou, e segundo
o dom que lhe conferiu. Como isto pode
ser leva a cabo? Somente mantendo uma consciência limpa e exercitando uma fé não
fingida — preciosas e indispensáveis qualidades, sem dúvida!—, mas, além disto,
tem que escutar com atenção estas importantes palavras de exortação: ”Pelo que, aconselho-te que avives o fogo
do dom de Deus que está em ti pela imposição das minhas mãos”
(1:6).
O dom deve ser avivado, porque se o deixamos
dormindo, se tornará ineficaz. Existe um grande perigo em deixar que o dom caia
em desuso, por causa das desalentadoras influências das circunstâncias que nos rodeiam.
Um dom que não é usado, cedo se tornará inútil; por outro lado, um dom que é
avivado e diligentemente utilizado, cresce e se expande. Não basta possuir um dom,
devemos ocupar-nos do dom, cultivá-lo e exercitá-lo: esta é a forma de melhorá-lo.
E observemos a força especial da expressão
“o dom de Deus”. Em Efésios 4:7, lemos do “dom de Cristo”, e ali também
encontramos todos os dons, desde o perfil mais alto até o mais baixo,
provenientes de Cristo, a Cabeça ressuscitada e glorificada de Seu corpo, a Igreja.
Mas em 2 Timóteo, isto está definido como o dom de Deus”. É verdade que Cristo nosso
Senhor — bendito seja seu santo nome! — é “Deus bendito sobre todas as coisas, para
sempre”, pelo que o dom de Cristo é o dom de Deus. Mas estejamos seguros de que na Escritura sempre que há alguma distinção,
e neste sentido é para que apreciemos a diferença; e por
isto temos uma boa razão para utilizarmos a expressão “o dom de Deus”. Não duvidamos
de que está em plena harmonia com a natureza e o objetivo da epístola na qual
aparece. É “o dom de Deus” comunicado ao “homem de Deus”, para ser usado por ele,
apesar da irremediável ruína da igreja professante e de todas as dificuldades, obscuridade
e o desalento do tempo no qual ele vive.
O homem de Deus não deve permitir que nada lhe impossibilite
cultivar e exercitar diligentemente seu dom, ainda que tudo pareça trevas e
obstáculos, porque “Deus não nos tem
dado espírito de covardia, mas de poder, de amor e de domínio próprio”
(1:7). Novamente “Deus” é apresentado aos nossos pensamentos, e isso, por sua
vez, com uma graça especial, ao prover o seu homem com tudo o que é necessário
para satisfazer as exigências particulares de seu tempo: “Espírito de poder, de
amor e de domínio próprio”. Que maravilhosa combinação! De fato, um maravilhoso
composto preparado “segundo a arte do perfumista”! Poder, amor e sabedoria! Quão
perfeito! Nem um só ingrediente a mais. Se fora somente um espírito de
poder, poderia induzir-nos a levar as coisas de forma arrogante e ditatorial;
se fosse só um espírito de amor, poderia
induzir-nos a sacrificar a verdade por causa da paz e da harmonia, ou a tolerar
indolentemente o erro e o mal, em vez de o arrancar. Contudo, o poder se
suaviza pelo amor e o amor se fortalece pelo poder; além disto, o espírito de sabedoria
se agrega para concentrar o poder e o amor. Numa palavra, tudo é uma formosa e perfeita
provisão divina para o homem de Deus. É justamente o que necessitamos para “os últimos dias” tão perigosos, tão difíceis,
tão cheios de todo tipo de perguntas desconcertantes e de aparentes contradições.
Se perguntássemos a alguém sobre o que consideraria mais necessário para tempos
como estes, seguramente diria: “poder, amor e domínio próprio”. Pois bem,
bendito seja Deus!, Essas são precisamente as coisas que nos tem dado em sua
graça para formar o caráter, moldar o caminho e governar a conduta do homem
de Deus até o final.
Porém há ainda mais provisão e exortação
para o homem de Deus: “Portanto, não
te envergonhes de dar testemunho de nosso Senhor, nem de mim, seu preso, mas
participa das aflições do evangelho segundo o poder de Deus” (1:8). No dia
de Pentecostes, quando a poderosa e rica corrente da graça divina fluía e levava
consigo a milhares de almas resgatadas; quando todos eram de um coração e uma
alma, quando em todos havia temor por causa das extraordinárias manifestações do
poder divino, os salvos participaram mais dos triunfos do Evangelho do que de
suas aflições. Entretanto, nos dias mencionados em 2 Timóteo, tudo era
diferente. O amado apóstolo estava só, prisioneiro em Roma, todos os que estavam
na Ásia o haviam abandonado. Himeneu e Fileto negavam a ressurreição. Todo tipo
de heresias, erros e males estavam se infiltrando. Os limites fixados pelos antigos
corriam perigo de ser arrastados pela corrente da apostasia e da corrupção.
Diante de tudo isto, o homem de Deus deve
recobrar ânimo e coragem para essa ocasião. Deve sofrer penalidades, reter a
forma das sãs palavras, guardar o bom depósito que lhe foi confiado, esforçar-se na graça que está em
Cristo Jesus, não enredar-se nos negócios
desta vida — embora possa estar ocupado
em suas atividades ordinárias; deve se manter livre como soldado, agarrar-se ao
firme fundamento de Deus, purificar-se dos vasos para desonra dentro da grande casa,
fugir das paixões juvenis, e seguir “a
justiça, a fé, o amor e a paz, com os que de coração limpo invocam o Senhor”. Deve
evitar “as questões néscias e insensatas”, apartar-se dos professantes sem vida
e puramente formais; estar inteiramente preparado para toda boa obra, e perfeitamente
equipado com o conhecimento das Sagradas Escrituras. Deve pregar a palavra,
instar a tempo e fora de tempo, ser vigilante em todas as coisas, suportar as aflições
e fazer a obra de evangelista.
Que categoria para um homem de Deus! Quem
é suficientemente apto para estas coisas? De onde obtemos o poder espiritual prático
para tais trabalhos? No propiciatório. O homem de Deus encontrará este poder na
paciente, diligente e confiada dependência do Deus vivente, e em nenhuma outra coisa.
Todos os nossos recursos estão nEle; só temos que aproximarmos dele, o qual é
suficiente para o dia mais escuro. As dificuldades não são nada para ele, mas é
sustento para a fé. Na verdade, as dificuldades mais graves, são simplesmente
sustento para a fé, e o homem de fé pode alimentar-se delas e crescer e tornar-se
forte. A incredulidade dirá: “Há um leão
que ruge no caminho!”; mas a fé pode matar o leão mais forte que ruja no
caminho do nazireu de Deus. É privilégio de todo verdadeiro crente estar muito acima
de todas as influências hostis que o rodeiam - sem importar quais seja, nem de onde
venham — e, na calma, na paciência e no resplendor da presença divina, gozar de
uma comunhão tão elevada, e gozar de tão ricos e extraordinários privilégios, que
somente foram desfrutados nos dias mais brilhantes e prósperos da Igreja.
Todo homem de Deus necessita recordar isto.
Não se obtém nenhum consolo, nenhuma paz, nenhuma força, nem poder moral algum,
nem nenhuma verdadeira elevação contemplando as ruínas. Devemos olhar para cima,
fora das ruínas, para o lugar onde o Senhor Jesus Cristo está assentado à destra
da Majestade nas alturas; ou melhor — para falar mais de acordo com nossa verdadeira
posição — olhar para baixo, do nosso lugar nos céus, para todas as ruínas da terra.
Usufruir realmente do nosso lugar em Cristo e ocupar o coração e a alma com ele,
constitui o verdadeiro segredo do poder para conduzir-nos como homens de Deus. Ter
a Cristo sempre diante de nós — sua obra para a consciência, sua pessoa para o coração,
sua palavra para o caminho —, é o único grande remédio, soberano e divino, para
um eu em ruínas, para um mundo em ruínas e para una igreja em ruínas.
Mas, devemos terminar. Gostaríamos de explanar
mais sobre o conteúdo desta preciosa segunda epístola a Timóteo. Seria
realmente refrescante deter-nos em todas as suas comovedoras alusões, seus sérios
chamamentos, suas importantes exortações. Porém isto resultaria num imenso volume,
por isso devemos deixar que o leitor cristão estudasse a epístola por si mesmo,
rogando que o Espírito eterno, que inspirou o escrito, o revele e o aplique, com
poder vivo a sua alma, a fim de que possa conduzir-se como um fiel e fervoroso homem
de Deus e servo de Cristo, no meio de um cenário de profissão vazia e de uma religiosidade
mundana, sem vida.
Queira o bom Senhor despertar em nós uma
plena consagração — em corpo, alma e espírito, em tudo o que somos e em tudo o
que temos — a Seu serviço! Cremos que só poderemos dizer que suspiramos por isto,
quando sentirmos uma profunda falta disto; e mais o anelaremos, quanto mais nos
cansarmos das condições das coisas irreais que estão dentro e ao redor de nós!
Querido leitor, clamemos com fervor, com
fé e com perseverança ao nosso Deus sempre misericordioso para que nos faça mais
sinceros, mais reais e mais ferventes; mais fieis ao nosso Senhor Jesus Cristo em
todas as coisas.
[1] O leitor deve saber que a palavra traduzida “perfeito” aparece
unicamente aqui em todo o Novo Testamento. Esta palavra (no grego: αρτιος)
significa «disposto», «completo», «tem ajustado», como um instrumento com todas
as suas cordas, uma máquina com todas as suas partes, um corpo com todos os
seus membros, conjunturas, músculos e nervos. O termo corrente para «perfeito»
é, no grego, τελειος, o qual significa «o alcance do fim moral», em algo determinado.
[2]
Pousio é a interrupção da lavoura na terra por 1 ano ou mais, descanso da
terra.
[3] O leitor deve distinguir o significado da expressão “na carne” em Gálatas
2:20 e em Romanos 8:8-9). Na passagem de Gálatas, “na carne” refere-se
simplesmente a nossa condição no corpo — a nossa vida natural na terra —;
enquanto que em Romanos, a mesma expressão manifesta o principio ou o
fundamento de nossa posição. O crente está no
corpo, quanto a sua condição; mas
não está na carne no que diz respeito ao principio de sua posição. Se examinarmos com maior profundidade as palavras da
Escritura, veremos que muitas vezes a expressão “na carne” é sinónimo de estar
“no corpo”.
[4]
(an.ti.no.mi.a.nis.mo, an.ti.no.mis.mo) sm.1.
Teol.
Doutrina que radicaliza o princípio reformador da justificação pela fé, e
afirma que ao cristão basta ter fé, e que não precisa demonstrar pelas obras o
poder de uma nova vida (Rom 6:1-4); e nem submeter-se a nenhum padrão de
conduta previsto na lei mosaica .
[F.:
antinomiano + -ismo]
[5] N. do T.— Em inglês, o termo seict
aplica-se geralmente a uma denominação
ou divisão (e é neste sentido que o autor o emprega) dentro do âmbito
religioso, e não necessariamente tem que ver com falsas doutrinas (pois, geralmente,
trata-se de «seitas ou denominações ortodoxas» que a doutrina fundamental se
refere). Em português, a definição do termo faz referência ao que comumente se
entende por seita dentro do
protestantismo (sendo um grupo
religioso que se desviou da verdade bíblica fundamental, assim como da salvação
pela graça, de modo que não possa afirmar que seus membros sejam salvos, no
sentido bíblico do termo). A definição bíblica de seita é simplesmente um partido ou divisão.
[6] N. do T.— A locução esprit
de corps, segundo o Dicionário da L'académie française (8 ème
édition), significa «Adesão dos membros de uma corporação às
opiniões, aos direitos, aos interesses da empresa». É utilizada para expressar
a consciência de grupo, a identificação de diversas pessoas com um coletivo indissolúvel,
cujos componentes atuam movidos por um fim comum, por um objetivo que intentam alcançar, somando as forças individualmente,
para atuar como se fossem um só corpo (por exemplo, um regimento, uma equipe
desportivo, um grêmio, etc.).
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