O DISCÍPULO NUM TEMPO MAL
Daniel capítulos 1 a 3
I.
Introdução
Os três
primeiros capítulos do livro de Daniel nos oferecem uma lição muito importante e
oportuna para o tempo em que vivemos, no qual o discípulo de Cristo está em
grave perigo de ceder às influências que o rodeiam — rebaixando o nível de seu
testemunho e debilitando seu caráter de discípulo — a fim de amoldar-se às
circunstâncias do momento.
II. O desânimo entre o povo de Deus
Desde o principio do capítulo 1, encontramos um quadro muito desalentador do estado de coisas, no que diz respeito ao testemunho exterior rendido a Deus na terra. “No terceiro ano do reinado de Joaquim rei de Judá, veio Nabucodonosor rei de Babilônia a Jerusalém, e a sitiou. E o Senhor entregou em suas mãos a Joaquim rei de Judá, e parte dos utensílios da casa de Deus; e ele os trouxe a terra de Sinear, à casa de seu deus, e colocou os utensílios na casa do tesouro de seu deus” (Daniel 1:1-2).
O estado que estes
versículos descrevem e considerado de um ponto de vista humano é mais que
suficiente para produzir o desânimo no coração, entristecer o espírito e
paralisar as energias. Diante de uma Jerusalém em ruínas, o templo profanado,
os utensílios do Senhor colocados na casa de um falso deus, e Judá levado cativo,
seguramente, o coração não pode sentir-se disposto a dizer que está motivado em
permanecer por mais tempo no caráter de discípulo e a perseverar em sua marcha
piedosa e fiel. Os valores são perdidos, o coração desfalece e as mãos se tornam
frouxas, quando a situação do povo de Deus torna-se tão deplorável. Só a mais abominável
presunção poderia conceber que um filho da casa de Judá tomasse o lugar de um
verdadeiro nazireu em semelhantes circunstâncias.
III. A atitude do homem de fé superam as
circunstâncias
Assim pode raciocinar
a natureza; mas não é essa a linguagem da fé. Bendito seja Deus! Existe sempre uma
esfera bastante extensa onde um espírito de verdadeira devoção pode se
manifestar; há sempre um caminho em que o verdadeiro discípulo pode recorrer, ainda
que seja ele só.
Qualquer que seja o estado das circunstâncias exteriores, a fé não foca nelas; seu privilegio é depender de Deus, nutrir-se de Cristo e respirar a atmosfera do céu, tão plenamente como se tudo estivesse numa harmonia e numa ordem perfeita.
Qualquer que seja o estado das circunstâncias exteriores, a fé não foca nelas; seu privilegio é depender de Deus, nutrir-se de Cristo e respirar a atmosfera do céu, tão plenamente como se tudo estivesse numa harmonia e numa ordem perfeita.
Que graça inefável
há aqui para o coração fiel! Todos os que desejam andar fielmente, encontrarão sempre
uma senda pela qual devem caminhar; enquanto os que vêm nas circunstâncias
exteriores um pretexto para diminuir as energias, não trabalharam nunca com fidelidade
e decisão, ainda que estejam em situações mais favoráveis.
Se alguma vez houve um tempo em que a debilidade do testemunho pode ter um bom pretexto, foi, inquestionavelmente, durante o cativeiro da Babilônia. Todo o edifício do judaísmo foi derribado; o poder real passou das mãos do sucessor de Davi às mãos de Nabucodonosor; a glória foi retirada de Israel; numa palavra, tudo parecia ter frustrado e desaparecido para sempre. Nada restou aos filhos de Judá em seu exílio, senão pendurar suas harpas sobre os salgueiros e assentarem-se “junto aos rios de Babilônia”, para derramar suas lágrimas pela glória que se foi (1 Samuel 4:22), pelo brilho obscurecido e pela grandeza perdida (veja o Salmo 137).
Tal poderia
ser a linguagem da cega incredulidade; mas — bendito seja Deus! —, quando tudo
parece ter chegado ao estado mais miserável, a fé se eleva para obter um
triunfo glorioso: e a fé, nós sabemos, é a única base real na qual o discípulo pode
apoiar-se para atuar. Não busca nenhum apoio nos homens, nem nas circunstâncias
exteriores: todos os seus recursos estão
em Deus. Por isso, a fé brilha com mais intensidade quando tudo é trevas ao redor
dela. Quando o horizonte se encontra carregado
das mais escuras nuvens, a fé se aquece ao sol da graça e da fidelidade divina.
Por isso
Daniel e seus companheiros foram capazes de superar as dificuldades
particulares do seu tempo. Assentaram em seus corações que nada em Babilônia devia
impedir-lhes de gozar um nazireado tão elevado como nunca antes foi visto em Jerusalém,
e sua consagração era justa. Julgaram como uma fé pura e bem fundada, o que a
fé sempre julga. Atuaram segundo o mesmo juízo que Baraque, Gideão, Jefté e
Sansão atuaram na antiguidade. O mesmo juízo que expressou Jônatas quando disse:
“Porque para Jeová não há nenhum impedimento em salvar por muitos ou por poucos”
(1 Samuel 14:6). Assim julgou também Davi quando no vale de Elá, denominou ao
pobre e trêmulo exército de Israel “Os exércitos do Deus vivo” (1 Samuel
17:26). Foi o juízo de Elias quando construiu um altar sobre o monte Carmelo com
“doze pedras, conforme o número das tribos dos filhos de Jacó” (1 Reis 18:31). Foi
o juízo do mesmo Daniel quando numa etapa mais avançada de sua historia, abriu sua
janela e orou voltado para Jerusalém (Daniel 6:10). Foi o juízo de Paulo quando,
em vista da avassaladora corrente de apostasia e corrupção que estava por vir, exorta
a seu filho Timóteo nestes termos: “Mantém o padrão das sãs palavras que de mim
ouviste” (2 Timóteo 1:13). Foi o juízo de Pedro quando, prevendo a dissolução
de todas as coisas, anima aos crentes a procurar “empenhar a ser achados por ele
sem mancha e irrepreensíveis, em paz” (2 Pedro 3:14). Foi o juízo de João quando,
em meio do desdobre das pretensões eclesiásticas, exorta a seu amado Gaio a não
imitar “o mau, mas o que é bom” (3 João 11). Foi, por fim, o juízo de Judas quando,
na presença da mais abominável impiedade, anima a um amado remanescente com
estas palavras: “Edificando-vos sobre vossa santíssima fé, orando no Espírito
Santo, conservai-vos no amor de Deus, esperando a misericórdia de nosso Senhor Jesus
Cristo para vida eterna” (Judas 20-21). Em uma palavra, era o juízo do Espírito
Santo, e por esta razão era o juízo da fé.
Tudo isso confere
imenso valor e interesse à atitude tomada por Daniel, tal como é expressa no primeiro
capítulo deste livro: “E Daniel propôs em seu coração não contaminar com a porção
da comida do rei, nem com o vinho que ele bebia; pediu, portanto, ao chefe dos
eunucos que não o obrigasse a contaminar-se” (versículo 8). Podia ter dito a si
mesmo naturalmente: “De que servirá a um pobre e débil cativo procurar guardar um
lugar de separação? Tudo está destruído. É impossível conservar um verdadeiro espírito
de nazireu no meio de uma ruína tão completa e de semelhante decadência: será
melhor que me conforme ao estilo de vida e aos costumes do país onde resido”.
Mas não; Daniel se colocava
sobre um terreno mais elevado. Sabia que seu privilegio era viver em tal intimidade
com Deus no meio do palácio de Nabucodonosor como se estivesse dentro do mesmo
recinto em Jerusalém. Sabia que qualquer que pudesse ser a condição exterior do
povo de Deus, havia uma senda de devoção e fidelidade aberta individualmente a
cada santo, e a qual pode recorrer, apesar de tudo.
E não podemos acrescentar que o nazireado de Babilônia possui encantos tão atrativos e eficazes como o nazireado de Canaã? Sem nenhuma duvida. É muito precioso e esplêndido encontrar um dos cativos em Babilônia, anelando fervorosamente uma separação tão austera, e inclusive fazendo-a uma realidade. Há ali, por sua vez, uma grande lição para todos os séculos, um exemplo muito adequado para animar e comover os crentes em todas as dispensações, e uma bendita demonstração de que, em meio das mais espessa trevas, um coração devoto pode gozar de uma senda ensolarada que nenhuma nuvem poderá obscurecer.
E não podemos acrescentar que o nazireado de Babilônia possui encantos tão atrativos e eficazes como o nazireado de Canaã? Sem nenhuma duvida. É muito precioso e esplêndido encontrar um dos cativos em Babilônia, anelando fervorosamente uma separação tão austera, e inclusive fazendo-a uma realidade. Há ali, por sua vez, uma grande lição para todos os séculos, um exemplo muito adequado para animar e comover os crentes em todas as dispensações, e uma bendita demonstração de que, em meio das mais espessa trevas, um coração devoto pode gozar de uma senda ensolarada que nenhuma nuvem poderá obscurecer.
Todavia, isto
não poderia ser assim, se o Senhor Jesus Cristo não fosse “o mesmo ontem, hoje e
para sempre” (Hebreus 13:8). As dispensações mudam e desaparecem. As instituições
eclesiásticas são derrubadas e tornam-se pó. Os sistemas humanos abalam e caem;
mas o nome de Jeová permanece para sempre
e sua memória de geração em geração (Salmo 135:13; 102:12). Sobre este elevado
terreno santo se apóia a fé. A fé eleva-se sobre todas as vicissitudes, para deleitar
num doce diálogo com a eterna e imutável fonte de todo bem verdadeiro.
E assim, como foi no tempo dos Juízes, a fé obteve triunfos mais gloriosos que todos aqueles que são conhecidos dos dias de Josué. Por isso o altar de Elias sobre o monte Carmelo esteve rodeado de uma glória tão brilhante como a que coroava o altar de Salomão. Isto é verdadeiramente alentador. O pobre coração é tão propenso a se debilitar e a deixar-se abater quando contempla as quedas e a infidelidade do homem, em vez de parar para considerar a fidelidade de Deus que nunca falha! “Mas o fundamento de Deus está firme, tendo este selo: O Senhor conhece os que são seus. E: aparte-se da iniqüidade todo aquele que invoca o nome de Cristo” (2 Timóteo 2:19). Que poder poderia minar jamais esta verdade imutável? Nenhum seguramente. E nada, portanto, pode minar a fé que lança mão dela, nem o edifício de devoção prática que se ergue sobre o fundamento desta fé.
IV. Resultados da fidelidade
Consideremos agora os gloriosos resultados da devoção e da separação de Daniel. Nos três primeiros capítulos observamos três coisas distintas que resultaram da posição assumida por Daniel e seus companheiros, com respeito “à comida do rei”:
1. O segredo referente ao sonho do rei lhes foi revelado.
2. Resistiram às seduções da “estatua que o rei havia levantado”.
3. Andaram sem sofrer o menor dano, dentro do forno de fogo ardente acesso por ordem do rei.
IV.1 O segredo de Jeová é para os que o
temem
“O segredo (ou intimidade) de Jeová é para os o temem” (Salmo 25:14). Esta afirmação é perfeitamente confirmada no caso que temos diante de nós. Os “magos, astrólogos, encantadores e caldeus” (2:2) que respiravam a atmosfera da presença real, estavam todos numa completa ignorância quanto ao sonho do rei. “Os caldeus responderam diante do rei, e disseram: Não há homem sobre a terra que possa declarar este assunto ao rei” (2:10). Era indubitavelmente assim; mas havia um Deus no céu que conhecia tudo isso, e que, além disto, podia revelar o assunto aos que pela fé, devoção e renuncia de si mesmos, desejavam separarem-se das contaminações de Babilônia, ainda que, fossem cativos nesta cidade. O que para o homem é só um enigma, um labirinto ou uma coisa misteriosa é perfeitamente conhecido de Deus; e Ele pode, e quer revelá-los a todos aqueles que andam com ele em santidade na sua presença. Os nazireus de Deus, nas circunstâncias humanas, podem ver mais longe que os mais profundos filósofos deste mundo. E por que meio? Como podem descobrir tão facilmente os mistérios deste mundo? Porque se posicionam sobre os vapores ou trevas que o envolvem; não participam de suas contaminações; ocupam um lugar de separação, dependência e comunhão. “Depois foi Daniel a sua casa e fez saber o que havia a Ananias, Misael e Azarias, seus companheiros, para que pedissem misericórdias do Deus do céu sobre este mistério” (2:17-18). Vemos agora a fonte de onde eles obtinham força e inteligência. Só tinham que voltar os olhos para o céu para obter um claro entendimento de todos os destinos deste mundo.
Quanta
verdade e simplicidade há em tudo isto! “Deus é luz, e não há nele trevas nenhuma”
(1 João 1:5). Portanto, se desejamos luz, não poderemos encontrá-la senão na
Sua presença; e só poderemos conhecer realmente o poder de Sua presença quando verdadeiramente
nos separamos de todas as impurezas da terra.
IV.2 Superioridade do homem de fé sobre o mundo
Observemos outro resultado da santa separação de Daniel. “Então o rei Nabucodonosor se prostrou sobre seu rosto e se humilhou diante de Daniel, e mandou que lhe oferecessem presentes e incenso” (2:46). Aqui vemos o mais orgulhoso e poderoso monarca da terra aos pés de um cativo. Magnífico fruto da fidelidade! Preciosa demonstração desta verdade: que Deus honrará sempre a fé que pode, em alguma medida, elevar-se à altura de Seus pensamentos! Jamais desonrará aqueles que com plena confiança lancem mão de seus inesgotáveis tesouros. Nesta memorável ocasião, Daniel experimentou por si mesmo, tão plenamente, como nunca antes ninguém havia feito, esta antiga promessa de Deus: “E verão todos os povos da terra que o nome de Jeová é invocado sobre ti, e te temerão… Jeová te porá por cabeça, e não por cauda; e estarás somente por cima, e não estarás debaixo” (Deuteronômio 28:10-13). Seguramente, na cena representada acima, Daniel era “a cabeça” e Nabucodonosor “a cauda”, isto considerado de um ponto de vista divino. Vejamos ainda o manutenção deste nazireado na presença do ímpio Belsazar (Daniel 5:17-29). Não temos aqui um testemunho magnífico da preeminência à qual estava destinada a semente de Abraão, quando os capitães de Josué punham os pés sobre o pescoço dos reis de Canaã, ou quando “toda a terra procurava ver a cara de Salomão, para ouvir a sabedoria que Deus havia posto em seu coração” (Josué 10:24; 1 Reis 10:24)? Sem nenhuma dúvida; e, até certo ponto, o testemunho é ainda mais magnífico. É natural esperar uma cena similar na história de Josué ou na de Salomão; mas, encontrar um orgulhoso rei de Babilônia aos pés de um de seus cativos, é algo que excede em muito tudo o que o homem pode conceber.
IV.3 O poder da fé, apesar da ruína
Estes fatos nos são apresentado aqui como uma prova surpreendente do poder que a fé tem para triunfar sobre todo tipo de dificuldades, e para produzir os resultados mais maravilhosos. O poder da fé continua sendo o mesmo, seja sua atuação nas planícies da Palestina, sobre o monte Carmelo, junto aos rios de Babilônia ou entre as ruínas da Igreja professante. Não há cadeias que possa retê-la, nem perseguição que a possa esfriar, nem nenhuma mudança que a possa alcançar. Sempre se eleva ao objeto que lhe é próprio, e este objeto é Deus mesmo, e sua eterna revelação. As dispensações mudam, os séculos seguem seu curso, as rodas do tempo seguem girando e sob seu enorme peso, as maiores esperanças do pobre coração humano; mas a fé permanece inabalável; esta realidade imortal, divina e eterna que bebe da fonte da pura verdade, e que encontra todos os seus recursos em Cristo, que é “o caminho, e a verdade, e a vida”.
Por esta fé
preciosa atuou Daniel quando “propôs em seu coração não contaminar-se com a porção
do manjar do rei” (1:8). É verdade que não lhe era possível voltar à santa casa
onde seus pais haviam adorado. A cidade santa havia sido pisada pelos rudes pés
de um inimigo estrangeiro; o fogo não ardia mais sobre o altar do Deus de
Israel; o candeeiro de ouro, com suas sete lâmpadas, não iluminava mais o lugar
santo; mas a fé se encontrava no coração de Daniel, e essa fé o transportou para
além de toda influência das circunstâncias que o rodeava, e lhe permitiu apropriar-se
de “todas as promessas de Deus”, que são o “Sim e o amém em Jesus Cristo” (2 Coríntios
1:20), e atuar segundo sua eficácia. A fé não se vê afetada por templos em ruínas,
por cidades destruídas, por lâmpadas apagadas, nem por glórias extintas. E porque?
Porque Deus mesmo não se vê afetado por nenhuma dessas coisas. Deus sempre pode
ser achado, e a fé possui sempre a certeza de poder encontrá-lo.
IV.4 Coloques do lado de Deus e nunca
deixes impressionar pelo homem
Porém a mesma fé que tornou estes santos homens da antiguidade capazes de recusar a comida do rei, os fez também desprezar a estátua do rei. Eles haviam separado de toda contaminação com o fim de gozar de uma comunhão mais íntima com o verdadeiro Deus; e, portanto, não podiam prostrar-se diante de uma estátua de ouro, por mais alta que fosse. Sabiam que Deus não é uma estátua; sabiam que Ele é real; não podiam apresentar sua adoração, senão somente a Deus, pois Ele só é o verdadeiro objeto da adoração.
Pouco lhes importava que todo mundo estivesse contra eles: só tinham que viver para Deus. Podiam acusá-los de ostentar ser mais sábios que seus companheiros; é possível que quando foram contra a corrente da opinião pública, esta conduta tenha sido taxada de presunção; inclusive alguém pode ter lhes preguntado se eram os donos da verdade. Será que todos “os sátrapas, magistrados, capitães, ouvidores, tesoureiros, conselheiros, juízes, e todos os governadores das províncias” estavam nas trevas e na ignorância? Era por acaso possível que tantos homens de alta posição, inteligência e saber estivessem no erro, e que só uns poucos estrangeiros cativos estivessem no que é verdadeiro?
Nossos nazireus
não se preocuparam em absoluto com semelhantes questionamentos. Seu caminho estava
claramente traçado diante deles. Deviam inclinar-se diante de uma estátua e
adorá-la, apenas para não dar a impressão de que estavam condenando a multidão?
Certamente não. E, no entanto, com quanta frequência, aqueles que desejam “ter sempre
uma consciência sem ofensa diante de Deus”, são acusados de erguerem-se como juízes
e condenar aos outros! Sem dúvida Lutero foi condenado por muitos por fazer oposição
aos doutores, aos cardeais e ao papa. Para evitar tal condenação, deveria viver
e morrer no erro? Que o querido leitor leve isto em consideração!
“Há, mas!” —
talvez alguém diga — “Lutero se encontrava frente a um erro palpável”. É o que pensava
Lutero; todavia, milhares de homens instruídos e eminentes pensavam de uma maneira
muito diferente. “Sadraque, Mesaque e Abede-nego” também tiveram que enfrentar
uma idolatria manifesta; mas o mundo inteiro era de opinião contraria. Que deviam fazer Então? “Importa obedecer mais a
Deus do que aos homens” (Atos 5:29). Que os outros façam como melhor lhes parecer,
“mas eu e minha casa serviremos a Jeová” (Josué 24:15). Se tivermos que
permanecer no erro e persistir em fazer o que pelo menos uma pessoa sente que é
errado, para evitar a impressão de que estamos julgando os outros, onde
estaríamos?
Oh, meu
querido leitor! Procure manter com perseverança e firmeza o seu caminho, siga adiante,
e dirigindo-se para o céu como um verdadeiro discípulo. Nunca consideres que ao
atuar assim, condenas o mundo. “Deixai de fazer o mal” (Isaías 1:16). É a primeira
coisa que o verdadeiro discípulo deve fazer. Depois, quando tiveres obedecido
este preceito, então poderás aprender “a fazer o bem”. “Se, pois, os teus olhos
forem bons, todo teu corpo estará pleno de luz” (Isaías 1:17; Mateus 6:22). Quando
Deus fala, não tenho que voltar para meus vizinhos para saber que efeito produzirá
sobre eles minha obediência à Sua voz, ou para considerar o que eles pensarão
de mim. Quando a voz do Senhor Jesus ressuscitado e glorificado caiu sobre o ouvido
de Saulo de Tarso, ele não começou a averiguar o que poderiam pensar dele os
principais sacerdotes e os fariseus, se ele obedecesse. Seguramente que não. “Não
consultei em seguida nem carne nem
sangue” (Gálatas 1:16). “Pelo que, oh rei Agripa, não fui rebelde à visão
celestial” (Atos 26:19). Tal é o espírito e o verdadeiro principio segundo os quais
deve caminhar o discípulo. “Dai glória a Jeová, vosso Deus, antes que faça vir as
trevas, e antes que vossos pés tropecem em montes de escuridão” (Jeremias
13:16). Nada pode ser mais perigoso que vacilar quando a luz divina resplandece
sobre o caminho. Se nós não atuamos segundo a luz, quando a possuímos, é certo,
que seremos envolvidos em densas trevas. E como alguém disse em outro lugar: “Não
vás nunca além da tua fé, e nem fiques atrás da tua consciência”.
IV.5 A fé provada ao extremo: a fé que vê
o Invisível
Mas, como já dissemos, se nossos nazireus recusaram inclinar-se diante da estatua do rei, então, tiveram que suportar a ira do rei e o forno de fogo que este havia mandado acender. Pela graça de Deus, estavam preparados para tudo isso: seu nazireado era algo real; estavam dispostos a sofrer a perda de todas as coisas, inclusive a própria vida, para defender o verdadeiro culto do Deus de Israel. Serviam e adoravam a seu Deus, não só sob a aprazível sombra das vides e das figueiras na terra de Canaã, mas, também, na presença do “forno de fogo ardente”. Confessavam a Jeová não só no meio de uma congregação de verdadeiros adoradores, mas, também, na presença de um mundo inimigo. Eles verdadeiramente haviam vencido como discípulos num tempo mal. Amavam ao Senhor e, por amor a ele, recusaram os bens do rei, resistiram sua ira e suportaram o forno de fogo que preparou para eles. “Rei Nabucodonosor…, não é necessário que te respondamos sobre este assunto. Se o nosso o Deus a quem servimos quiser nos livrar do forno de fogo ardente, e de tua mão, oh rei, Ele nos livrará. E se não, saibas, oh rei, que não serviremos a teus Deuses, nem tampouco adoraremos a estatua que tens levantado” (3:16-18). Tal era a linguagem de homens que sabiam a quem pertenciam, e onde se encontravam; de homens que haviam calculado o custo com calma e decisão; de homens para os quais o Senhor era tudo e o mundo nada. Tudo o que o mundo podia oferecer, e suas próprias vida estavam em jogo; mas que lhes importava? Suportaram tudo “como vendo aquele que é Invisível” (Hebreus 11:27). A glória eterna se apresentava diante eles, e estavam perfeitamente preparados para alcançá-la passando através das chamas. Deus podia conduzir os seus servos ao céu num carro de fogo, ou através de um forno ardente, como bem Ele quisesse. Qualquer que seja o modo de nossa partida é bom que estejamos bem próximos Dele, na sua presença.
Todavia, por acaso
o Senhor não poderia impedir que seus amados servos fossem lançados na fornalha
de forno ardente? Sim, sem nenhuma dúvida; isso teria sido fácil para Ele. No entanto,
não o fez. Era sua vontade que a fé dos seus servos fosse posta à prova no forno
de fogo, que passasse pelo crisol mais ardente, a fim de que “seja achada em louvor,
glória e honra” (1 Pedro 1:7). Quando o ourives faz passar o lingote de ouro pelo
forno, é porque não tem nenhum valor para ele? Não, de forma nenhuma, é precisamente
o contrário!; e como alguém bem o tem assinalado: “Seu objetivo não é somente
eliminar as impurezas do metal, mas também fazer que ele resplandeça com mais brilho”.
É evidente
que se, por um ato de poder, o Senhor
tivesse impedido que seus servos fossem lançados no forno de fogo, teria havido
menos gloria para ele, e, como consequência, menos bênçãos para eles. Foi
infinitamente melhor desfrutarem da sua presença e simpatia no forno, do que pelo
seu poder, os tivessem guardado de ser lançados nele. Que glória o Senhor
obteve nisto, e que imenso privilegio para eles! O Senhor havia descido para
andar com seus nazireus no forno onde foram lançados, por causa da sua fidelidade.
Haviam andado com Deus no palácio do rei, e Deus andou com eles no forno do rei.
Foi o momento mais abençoado da carreira inteira de Sadraque, Mesaque e Abede-nego.
Quão pouco ou nada, o rei imaginou da elevada posição na qual estava pondo os
objetos da sua ira e fúria! Todos os olhos que estavam fixados contemplando a grande
estátua de ouro, agora são atraídos para contemplar com assombro os três cativos.
Que quer dizer isso? “Três varões atados!”
“Quatro varões soltos!” Será isto real?
Era real o forno? Lamentavelmente, os “homens mais poderosos” do exército do rei,
provaram que era real!, como teria acontecido se a estatua de Nabucodonosor fosse
lançada sobre eles. Não havia ali nenhum elemento em que um ascético ou um
incrédulo pudesse agarrar-se. Era um verdadeiro forno, uma verdadeira chama, e estes
três “varões foram atados com seus mantos, suas calças, seus turbantes e seus
vestidos”. Tudo era real.
Contudo, havia
também uma realidade ainda maior: Deus estava
ali, e sua presença mudava todas as coisas; ela mudou “o edito do rei”, transformou
o forno num lugar de elevada e santa comunhão, e fez dos homens atados por
Nabucodonosor, homens soltos por Deus.
Deus estava ali! Ali, em seu poder soberano, para demonstrar toda a vaidade da oposição do homem; ali, em toda sua profunda e terna compaixão para com seus servos provados e fiéis; ali, em sua graça incomparável para por em liberdade os cativos e para atrair os corações de seus nazireus a essa íntima comunhão com ele da qual tinham uma sede ardente.
V. Os tempos da paciência de Deus
Pois bem, querido leitor, não vale a pena passar através de um forno de fogo se é para gozar ainda mais da presença do Senhor Jesus Cristo, e da simpatia do seu amante coração? Não é preferível estar cheio de cadeias junto ao Senhor Jesus Cristo, que possuir sem ele, um número incontável de preciosas joias? Um forno com ele não é mais desejável do que um palácio onde ele não se encontre? A natureza responderá “Não!”, a fé, porém, dirá “Sim!”
Convém recordar também que o tempo em que estamos não é o tempo do poder do Senhor Jesus Cristo, mas o tempo da sua simpatia. Ao atravessar as águas profundas da aflição, o coração pode às vezes sentir-se disposto a exclamar: “Por que o Senhor não age com poder para livrar-me?” A resposta é que não é ainda “o dia do seu poder”. Podia afugentar esta enfermidade, fazer desaparecer tal ou qual dificuldade, aliviar as cargas, impedir esta catástrofe ou preservar da morte a este ser querido. Mas, em vez de empregar seu poder, deixa que as coisas sigam seu curso, e derrama sua doce simpatia no coração oprimido e quebrantado, de tal maneira que ficamos convictos de que não queria deixar-nos sem esta prova por nada do mundo, devido à abundância da consolação.
Esta, querido
leitor, é a maneira em que nosso Senhor Jesus atua agora. Dentro em pouco empregará
seu poder, aparecerá como o Sinete do cavalo branco, desembainhará sua espada,
despirá o braço da sua santidade, vingará o seu povo e lhe fará justiça para sempre;
mas, no presente momento, sua espada está na bainha e seu braço está ainda coberto.
Agora é o tempo, para ele dar a conhecer o profundo amor de seu coração e não o
poder do seu braço nem o fio da sua espada. Estamos contentes de que seja
assim? É suficiente a simpatia do Senhor Jesus Cristo para seu coração, inclusive
no meio das mais profundas angustias e da aflição mais intensa? Nosso coração
inquieto, a impaciência de nosso espírito e nossa vontade não quebrantada, nos
induziria sempre a desejar escapar das provas, das dificuldades ou das cargas
que nos oprimem; contudo, não pode ser assim, uma vez que implicaria numa perda
incalculável para nós. Devemos passar por cada uma das disciplinas da escola; mas
o Amo nos acompanha e a luz do Seu rosto, a terna simpatia do seu coração nos sustém
quando passamos pelos exercícios mais penosos.
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